Esta é uma obra de ficção, baseada numa história real, elaborada com muito carinho em homenagem a todas as famílias que já perderam seus entes queridos em acidentes ou crimes nas rodovias!
O ACIDENTE
-- Quando é para acontecer, não
tem jeito – dizia um rapaz ao ver o desespero impresso no rosto de Valter, bem
como no de seus ajudantes, enquanto eles recolhiam o corpo do asfalto quente e
o colocavam, com todo o cuidado possível, dentro de um furgão, numa maca
improvisada com mãos calejadas.
-- O que foi que eu fiz? –
murmurou baixinho consigo mesmo o motorista, adentrando o furgão com destino
certo: o Hospital San José, no centro de Feldstal.
Lembrava que instantes antes do
ocorrido fora acometido por um pensamento estranho lhe dizendo que o vento não
soprava para uma só direção e, assim como o vento, também era nossa vida!
“Teria sido uma premonição?” Perguntou-se enfim, quando deram entrada no
hospital e descobriram que já não havia mais vida para salvar. “Se fora como o
vento que passou”, iria dizer aos seus netos no futuro, “como o vento”.
Ele, Valter, já era motorista há
12 anos, tendo herdado o gosto pelas pistas do falecido pai pernambucano. O
saudoso Moacir era fera no volante e quando percebeu que o filho começou a
andar com suas próprias pernas, mostrou a ele qual o caminho que deveria
seguir, levando-o junto em suas viagens de ponta a ponta do “paisão” em que
viviam, e o menino correspondeu aos sonhos do caminhoneiro. Só não viveu o
bastante para ver o filho comprar seu caminhão e se tornar empregado-patrão, o
que era um grande lamento, sempre lembrado por Valter. O seu amado pai não
estivera ali com ele quando ele melhorou de vida, e nem se encontrava agora, em
que ele sofria com aquele acidente dado pelo destino, talvez, mas que de novo
mudaria sua vida, pois nunca mais voltou a dirigir.
Os policiais chegaram numa
viatura barulhenta e pintada de pó, minutos depois do corpo, o que para Valter
pareceram séculos, e o conduziram junto com seus ajudantes à delegacia. Com
extrema força de vontade o filho do saudoso Moacir segurara as lágrimas até o
momento em que a viatura deixava o hospital e ele pode ver a família da vítima
chegando com uma máscara de tristeza e descrédito. Aquela imagem o fez chorar,
naquele momento e em muitos outros. Sentiu-se como um assassino deixando a cena
do crime!
Feldstal era, e com certeza como
diziam todos, sempre seria uma cidade pequena do interior do estado de São
Paulo e, com em todas as pequenas cidades, as notícias correm as léguas devido
a sua raridade nestes ambientes de sossego patrocinado por seus habitantes. A
cidade era atravessada pela rodovia Dr. Eugênio Marcondes, estando metade da
cidade numa área montanhosa e o restante na parte baixa, praticamente oposta, plana
feito um tapete. Foi nesta rodovia que o acidente aconteceu e, a essa altura,
já era comentado de boca em boca.
Dona Julia e sua filha mais nova,
Rosa, chegaram ao San José por volta das 13h daquele 21 de agosto. Foram
levadas pelo patrão de dona Júlia, imediatamente ao ficaram sabendo da
tragédia, e ainda não entendendo nada. Depararam-se com um carro de polícia
partindo assim que puseram os pés no estacionamento do minúsculo hospital. Rosa
ainda comentou com sua mãe que havia um homem chorando no carro e, por certo,
estaria sofrendo de uma dor muito forte, mas dona Júlia nem deu ouvidos, presa
em um sentimento que todos ouvem falar, mas graças a Deus, poucos o sentem: a
dor de perder um filho. No caso dela era uma filha, uma menina de ainda 16 anos,
“uma menina maravilhosa”, afirmava sempre.
Acabara de chegar à loja, ainda
no horário de almoço, quando a notícia chegou por meio de dois vizinhos que ali
a encontraram. Em princípio duvidou, mas quando seus vizinhos lhe descreveram
as roupas e aparência exata com que vira sua menina ir para o trabalho, teve de
aceitar e, com a mesma coragem de sempre, enfrentar a situação. Chamou o dono
da loja de roupas em que trabalhava há sete anos e lhe pediu uma saída. Este
não só a deu como também foi buscar Rosa e, prontamente, as levou ao hospital
para um eventual reconhecimento, que foi positivo. Dona Julia, que se dizia
separada há muito tempo, telefonou para o patrão de sua filha que partira e
este providenciou de bom coração todos os preparativos para o velório onde os
irmãos, cunhados, muitos amigos, o namorado Paulo e a mãe se despediram
rezando.
Depois do enterro, dona Julia
deixava o cemitério, abraçada a um dos genros no momento em que um desconhecido
abordou-os.
-- Meus pêsames senhora – disse o
estranho.
-- Agradeço muito! Conheceu minha
filha?
-- Não, eu não sou desta cidade,
mas eu esta enorme multidão no velório e vim ver de quem se tratava! Muito
triste fiquei quando me deparei com aquela menina em seu corpinho, ali, tão
bela e sem vida, que me atrevo a lhe perguntar como era o nome de sua filha.
-- Não era não, moço! – disse
dona Julia enquanto novas lágrimas saltavam de seus olhos vermelhos – será
sempre Elizabeth Stefany, minha Bete, onde quer que ela esteja.
ANTES
Se fosse uma semana antes,
Elizabeth não aceitaria aquele sermão de sua mãe. Ela quase não podia acreditar
em si mesma, ouvindo coisas que sempre dissera saber e cor, essas preocupações
que toda mãe tende a ter com seus filhos. O sermão deste dia falava de como uma
moça de família deveria agir com o atual namorado e, por incrível que pareça –
pensou Bete quando sua mãe concluíra sua última lição de vida – sem uma única
interrupção por parte dela, e nem mesmo uma tentativa de mudar de assunto. Se
fosse uma semana antes... É, realmente concordava com este súbito pensamento,
estava se achando estranha de uns dias pra cá. A sensação era de que se sentia
mais – como era mesmo a palavra que se encaixava em seu novo eu? Exato, se
lembrou – se sentia mais maleável. Se fosse num domingo normal. A essa altura
da tarde, 18 horas, já estaria se preparando para sair com o gato e, ao
contrário disso, ficara ali, por quase meia hora, no quarto de sua mãe sem
falar uma única frase.
Quando percebeu que sua genitora
terminara, simplesmente pelas palavras e a beijou no rosto.
-- Eu te amo mamãe, sei que me
disse até hoje é a mais pura verdade e sempre a escutei da minha maneira.
Confie em mim, eu prometo que jamais a decepcionarei.
Dona Julia se encantou com as
palavras da filha e teve que disfarçar uma lágrima. Ela acreditava em Bete e,
inconscientemente, viu realidade nas suas palavras de adolescente e retribuiu o
beijo recebido.
E Elizabeth cumpriu a sua
palavra!
O gato, ou melhor, Paulo,
aguardava na sala sua “mina” para poderem dar a tradicional volta na praça, que
consistia em encontrar os colegas, jogar papo fora, paquerar (o que não era o
caso deles, mas sempre se achava um jeito para dar uma escapadinha no olhar),
enfim, estas coisas que todo jovem já fez.
Enquanto Bete se demorava no
quarto, ele se pôs a lembrar da época que foram apresentados. Um colega dissera
que tinha uma gatinha querendo conhecê-lo e deu logo a descrição completa: “16
aninhos, moreninha, cabelo escarlate, mais de um metro e meio, um filé”. Paulo
é claro, ficou interessado, mais questionou um pouco mais.
-- Mas é descente Rodrigão, você
sabe bem que eu gosto de pessoas sérias.
-- Pô faltou isto é? Pois lá vai:
ela é super-descente, sacou.
Paulo fez que sim com a cabeça
mas não acreditou muito nas palavras do colega. Da última vez que o mesmo
apresentou-lhe outra garota, a aparência era ao contrário e a menina não tinha
nada na cabeça.
Só não esperava que a de hoje
fosse aquela que ele já paquerava há uns dois meses e nunca lhe dera bola. Não
teve jeito. Conversaram demais, foram embora juntos e no outro dia já estavam
namorando sério. O amor tem dessas coisas, quando vem é rápido e arrasador, não
tem como escapar.
Ainda flutuava nas lembranças
quando a beldade finalmente lhe puxou pelo braço, levantando-o ao mesmo tempo
em que o intimava.
-- Vamos?
Foram somente uns segundos para o
adeus a dona Julia e lá se foram eles, formando um belo casal.
Na praça tudo normal, recheado
apenas por umas cervejas e pizzas, muitas risadas, até as 22h, quando começavam
as despedidas e cada um seguia seu rumo. Elizabeth esquecera completamente a
sensação de bondade exagerada que lhe cercava e conseguira se divertir como
sempre. Foi somente mais tarde, ao se deitar e rezar, que se perguntou mais uma
vez se havia algo errado. Fez que não para si mesma no escuro do quarto e
dormiu... e sonhou...
... que vivia agora num lugar
lindo e distante, tão iluminado que chegava a cegar, rodeada por (será que são
anjos?) sombras de cor prateada que andavam a esmo, indo e vindo. Perdida, era
como se sentia, não tinha certeza de estar ouvindo coisa alguma, mas parecia
haver um som, sim, lá longe. Concentrou-se e pode identificar o ruído, era como
se muitas pessoas estivessem chorando, todas juntas. Pôs-se a andar e foi ai
que notou como o chão se tornara macio e percebeu também que usava somente um
sapato. Baixou os olhos para o chão macio e uma neblina branca – daquelas que
se vê em filme de terror, pensou – cobria-lhe agora até a altura do joelho e a
roupa que trazia junto ao corpo... há quanto tempo não vestia, talvez umas
quatro semanas. Lembrava-se agora de ter dito a sua irmã mais velha, a Maria,
de que aquela roupa já não lhe caia tão bem. Caminhou, caminhou, caminhou,
olhou para todos os lados, mas tudo lhe era igual, como se ao andar não saísse
do lugar, e aquelas sombras continuavam, sem cessar, seu eterno vai e vem. Foi
quando viu alguém, mas a voz falhou. O “alguém” começou a se aproximar
lentamente, e ela pode reparar em quem era, era...
... e acordou. Uma chuva forte
batia no telhado do seu lar. Levantou um pouco a cabeça e pode ver Rosa ainda
dormindo na parte de cima do beliche, estacionado ao lado de sua cama. O rádio
relógio acusava: 8h30, era a hora de levantar, dar um jeito na casa e, mais
tarde, ir trabalhar. Por alguma razão, achava ter sonhado com algo
interessante, mas não conseguia lembrar e já não tinha importância. O sono
acabou e o sonho se foi.
“Como o vento”.
Elizabeth saiu de sua casa para o
trabalho ao meio-dia, quando o sol resolveu aparecer, numa rotina que cumpria
com rigor desde janeiro último. Antes de sair, trocara três vezes de roupa, até
escolher uma saia azul desbotada e uma camiseta com estampas de flores
diversas, que ganhara no Natal de Rosa. Saia no mesmo horário, sempre fazendo o
mesmo itinerário, que era cerca de 20 minutos na ida e 30 na volta, pois morava
na parte alta da cidade e o escritório de contabilidade Boas contas era no
outro lado, quase no fim da cidade. Gostava muito do que ela chamava de passeio
casa-trabalho, eram árvores por todas as ruas, diversas pracinhas com jardins
bem cuidados e casas de construção antiga, que ela não se cansava de admirar.
No escritório ela fazia um pouco de tudo, desde serviços de Office boy (no caso
dela Office girl) até auxílio nas papeladas dos clientes distintos de Feldstal.
Era no Boas Contas que Elizabeth exercitava o que aprendia no segundo ano
técnico do colégio Frederico Severo, em Campo Verde, cidade vizinha.
Começou a diminuir o passo ao
ver-se próxima da autoestrada, lembrando-se de que perdera as contas das vezes
em que dona Julia atravessara com ela, de mãos dadas, até que completara seus
oito anos e passara a atravessar sozinha, para tomar o ônibus para a escola.
Bete não recordava ter estado com João Antônio, seu pai, na mesma situação da
mãe e se lembrasse, certamente ver-se-ia no colo do pai. A única vez que o vira
fora por meio de uma foto gasta pelo tempo e pela pouca qualidade. Ele
desaparecera desde o tempo em que Bete ainda usava fraudas e Rosa mal tinha
acabado de nascer. Foram sempre as palavras da mãe, que mesmo assim dizia a
todos ter se separado.
Onde se encontrava agora o pai?
Perguntou-se, e depois questionou o porquê desta curiosidade repentina, que se
estendeu. E como ele era mesmo? A pergunta ficou sem resposta em sua mente no
mesmo instante em que parou para observar se poderia atravessar a pista. Os
olhos, agora sonolentos, primeiro procuraram algum carro em alta velocidade e,
com o auxílio da cabeça, procuraram também do outro lado e registraram,
vagamente, a vinda de um caminhão branco a mais de quinhentos metros. Com a
certeza de quem sabe o que faz, começou a caminhar em direção ao seu destino, o
outro lado da rodovia.
Os pensamentos continuaram
distantes, lembrava-se do beijo da despedida que ganhara de Paulo na noite
anterior, do sorriso da mãe, e ainda podia ouvir a voz do pai lhe dizendo como
era linda. Depois de notar que deixara para trás as duas faixas contínuas que
separam as mãos de direção na rodovia, balançou a cabeça com força e fez a
última pergunta ainda em vida, para si mesma. Como posso me lembrar da voz de
meu pai se nunca o vi de frente depois de crescida um pouco? Foi quando a ouviu
de novo e era bem atrás de si. Parou, virando-se. O caminhão agora já estava
próximo, bem próximo.
O que Elizabeth viu ao se virar,
a princípio, não parecia ser o seu pai. Um homem alto, cabelos castanhos e
barba para fazer. Trajava um terno bege, de modelo antigo, com uma calça social
preta combinando. Não viu gravata orem o colete ali estava. A barra da calça
chegava a roçar o chão, dando a impressão de que ele não usava sapatos. A
princípio não teve certeza, mas ao ouvi-lo, sorriu feliz.
-- Venha me dar um abraço Bete.
Você continua linda como quando era um bebê. Venha, venha minha filha, venha
comigo!
Ela foi ao seu encontro e ainda
sorria quando o caminhão a atropelou. Mais tarde o motorista declararia, em seu
depoimento à polícia, que não vinha carro algum em sentido contrário,
obrigando-a a retornar. Ela parara no meio da pista e, sem olhar para os lados,
voltou, entrando na frente do 1313. Apenas não contou que ela parecia estar
sendo chamada de volta, pois achou que pensariam ser uma desculpa e achar mesmo
que não fazia parte dos fatos, mas foi isto que o senhor Valter sentiu, mesmo
tendo a certeza de que só havia aquela menina ali.
DEPOIS
Assim que abriu os olhos era o
mesmo que ter despertado de uma longa noite de sono, mas ao invés de estar
deitada, como era o normal de quando se acorda de manha, estava ali, em pé,
quase cega pela intensidade da claridade que a cercava. Quando suas pupilas se
acostumaram com a luz, ouviu um som distante parecido com o de muitas pessoas
chorando ao mesmo tempo, e viu sombras prateadas (não seriam anjos?) num vai e
vem alucinante. Reparou que vestia uma roupa que há meses não usava. Sem saber
bem porque, começou a andar e sentiu o chão macio por debaixo do pé direito,
que estava descalço, enquanto o esquerdo levava aquela botinha preta de couro
número 35, presente do namorado. O chão estava encoberto por aquela neblina
muito comum em filmes de terror. De repente, o sonho da noite passada a invadiu
provocando-lhe um leve choque pelo corpo. Ela já vivera aquele momento de alguma
forma que não entendia, e tinha consciência de que faltava alguma coisa... ah,
sim, lá vem o que falta, se lembrou. Ela pode ver alguém caminhando em sua
direção. O “alguém” vinha rápido, como se flutuasse rente à neblina e era,
era...
... era tão lindo!
Cabelos loiros longos, cheios e
encaracolados revestindo um rosto alvo tal as nuvens. Os olhos pequenos tinham
a cor de mel, a roupa era um vestido branco que parecia comprido o bastante
para ir até os pés. Este alguém transmitia a mais profunda paz. Ela pensou em
dizer qualquer coisa, já que continuava sem entender nada, mas ao se lembrar de
que no sonho sua voz fugiu, resolveu fazer as perguntas na hora certa e com
calma, o que não aconteceu.
O “alguém”, que ela tinha
absoluta certeza de se tratar de um anjo, parou ao lado dela, pegou uma de suas
mãos e indicou o caminho a seguir com um olhar. Enquanto caminhavam lhe contou,
numa voz rouca, tudo o que tinha o direito de saber.
-- O seu pai, João Antônio,
chegou aqui quando você era bem pequena, Elizabeth. Foi assassinado e jogado
num rio por ladrões. Ele foi escolhido para chamá-la porque a amava muito e
teve pouco tempo para demonstrá-lo em vida. Você foi atropelada por um caminhão
e faleceu ao chegar ao hospital, e muitos rezam por você neste instante. Pode
sentir?
Sem que ela respondesse, ele
pareceu ler a resposta afirmativa em sua mente e continuou.
-- Eu sou um dos encarregados de
receber e orientar os que aqui chegam, e vou te levar até aquela luz maior –
disse e apontou para um lugar que parecia uma porta, e realmente ela notou que
naquele ponto a luz era mais forte. – Mas antes, não acha que está faltando
alguma coisa?
Elizabeth baixou os olhos na
direção dos pés encobertos e sorriu.
-- Vamos buscar juntos – o anjo
disse, agora também sorrindo.
E se foram.
O casal observava com afeto o
filho de um ano e meio que brincava, sentado na grama que se estendia em frente
ao ponto de ônibus rodoviário. Em dado momento o bebê se levantou e foi até
perto de um mato alto, como se procurasse algo e soubesse que estava ali. Os
pais, pessoas simples, acharam graça quando o menino voltou para a grama com
uma botinha preta que ele mal conseguia carregar, e a levantou para o céu com
as duas mãozinhas, baixando em seguida, dando um breve aceno de adeus.
Vim encantar-me novamente aqui, Joe. No ano passado (eu acho), havia lido lá no site Autores. Mas é sempre bom reler aquilo que é muito bom, apesar da tristeza da história. Meu abraço. paz e bem.
ResponderExcluirEmbora muito triste um texto muito lindo também.
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