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terça-feira, 21 de maio de 2013

Nem tudo são flores

Um dos meus últimos contos inéditos, de presente para os amigos.
JGCosta

Clique na imagem para ver de onde ela veio!



Quando eu era pequeno meu pai me ensinou que existiam duas maneiras de fazer tudo na vida. Eu optei sempre pela mais difícil.
Por quê? Minto dizendo que não faço ideia. Na verdade costumo dizer que deve ser porque gosto de sofrer ou...
Ou as maneiras mais fáceis nem sempre são as mais corretas.
Um belo exemplo disso foi quando comecei a namorar pela primeira vez, na casa dos 17 anos, com uma garota linda de 16. O que mais eu ansiava era pelo sexo, desesperadamente. Mas, por uma questão de postura e respeito para com a mesma, decidi agir como um cavalheiro e ela literalmente me chutou. Seis meses depois estava grávida de outro. Descobri, por A + B, que a perdi por respeitar demais.
Não teria sido muito mais fácil me deixar levar?
Na escola tentei avidamente fazer inúmeras amizades, mas na maioria das vezes preferia ficar sozinho, devorando grossos volumes de ficção ou livros de história. Quantas vezes não fui tomado por um cara estranho, e assim sem querer ia afastando os colegas, que só se aproximavam de mim para obter ajuda.
Por que eu me aprofundava tanto em meus sonhos de olhos abertos e me isolava dos demais?
Nas empresas que trabalhei o fato se repetiu. Profissionalmente eu interagia muito bem, mas quando o assunto caia para o lado pessoal, eu sempre era esquivo ao extremo, dando sempre preferência aos meus assuntos e passatempos pessoais. Festas de confraternização, nem pensar, churrascos, longas bebedeiras em bares, tudo isso não fazia parte da minha agenda.
Será que eu me achava superior culturalmente de todos que me cercavam?
Mesmo depois de casado, todo o relacionamento externo seguiu o mesmo padrão, mas tive que tentar aprender a me dividir, a dar um pouco da minha atenção para alguém que não fosse somente eu. Tentei, tentei, não consegui e claro, o divórcio chegou como num passe de mágica.
Seria o egoísmo uma das minhas “qualidades”?
Demorei a entender que sempre agi desta forma por simplesmente isso fazer parte de mim, do que eu sou, e quando finalmente cheguei a esta conclusão, aprendi a me aceitar. Mesmo hoje, sendo chamado de Doutor pela maioria, um título do qual não me acho merecedor, a velha frase do meu pai sempre ecoa em minha mente: existem duas maneiras de se fazer tudo na vida...

“Doutor Mathias, o vereador Jarbas deseja lhe falar.”
“No telefone ou pessoalmente?”
“Ele está aqui na recepção”
“Mande-o entrar Clarisse. Obrigado.”
Onze de agosto, o Dia do Advogado, e o meu primeiro presente é um político. Bom, segundo presente, minha doce secretaria Clarisse, um verdadeiro achado, já havia me presenteado com um belo vaso de tulipas, minhas preferidas, e uma irresistível caixa de bombons.
“Como vai Doutor?”
“Deixe de lado o Doutor. Vou bem, muito bem, sente-se.”
“Você parece mais alegre hoje, alguma programação especial?”
“Nada de mais, processos e mais processos, uma infinidade deles.”
“Até parece que foi ontem Mathias, lembra do colégio, o quanto a gente aprontava. Você ainda parece o mesmo rapaz, enfeitado com alguns cabelos grisalhos na lateral da cabeça.”
Creio que ele nunca me conhecerá de verdade. Nunca estudamos na mesma classe e o máximo de contato entre nós foi um esbarrão maldoso da sua parte, no corredor da cantina. Será que devo dizer isso a ele?
“Você, meu caro vereador, está realmente com a aparência de alguém com 50 anos...”
“Sempre esqueço que o Doutor não tem papas na língua...”
“Perdoe-me a sinceridade, mas não é crítica, é um elogio. Os homens não devem aparentar exatamente aquilo que são?”
Eu sabia que esse olhar de fuzilamento viria, hoje mais rápido ainda do que o normal.
“Pensou na minha proposta?”
“Qual delas?”
“Abandonar esse escritório e advogar exclusivamente para a Câmara?”
“Vocês já tem um excelente advogado por lá.”
“Ora, não seja ridículo, ele não passa de uma ameba crescida demais, para todos os lados.”
“Não penso assim, ele já se saiu bem em diversos trabalhos.”
“Você continua sendo ridículo Mathias, falta muito para que ele chegue ao seu patamar.”
“Ou será que lhe falta mais decoro profissional?”
“Pra quem?”
“Estávamos falando do seu advogado?”
“Ah, lógico, lhe falta muitas qualidades, por isso que eu e os colegas insistimos tanto para que aceite esse cargo.”
Como gostaria que ele pudesse entender que eu jamais poderia aceitar esse cargo. Vai totalmente contra os meus princípios e nem é a minha área principal de atuação.
“Jarbas, já falamos inúmeras vezes sobre isso e a minha resposta continua sendo a mesma: não me enquadro às expectativas que vocês, nobres edis, tanto desejam.”
“Queremos somente que você faça o melhor por nós Doutor, e isso é a sua maior virtude. Lembre-se: ótimos honorários o aguardam por lá!”
“Não são os valores que discutimos anteriormente que me desagradam, meu caro, mas serão as condutas que terei de tomar.”
“Mas é só seguir as Leis...”
“E as interpretar em favor dos meus clientes, sim, esse é o meu encargo público. Mas prefiro continuar advogando para a minha atual clientela.”
“Insisto Mathias, não existe diferença entre cá e lá...”
Se eu não falar agora, vou ter um treco, alguém segure a minha língua.
“Existe toda a diferença do mundo, vereador Jarbas. Aqui eu determino quais serão meus clientes e minhas causas a serem defendidas. Lá eu estarei amarrado ao compromisso de representar ou ao menos chefiar a representação de todos os componentes da Casa.”
“E isso implica em que?”
“Implica que não gosto que nada seja decidido por mim, resumidamente é isso!”
“Clientes são clientes.”
“E advogados são advogados...”
“Você torna tudo mais difícil do que é.”
“Pois é, assim pensava também meu finado pai...”
“Deus O tenha, foi um grande homem.” – Ele disse com a mão direita sobre o coração.
Foi mesmo, o melhor de todos que conheci, com suas qualidades e defeitos.
“Você o conheceu?”
“Não, somente de nome...”
Foi o que pensei.
“Que pena, iria gostar muito dele, jogava xadrez como um russo, falava alto como um italiano e gostava de viver como um brasileiro...”
“Não mude o foco Doutor, você não pode reconsiderar a minha proposta? Precisamos do melhor no comando do nosso setor jurídico.”
“Agradeço muito pela consideração Jarbas. Por favor, faça com que esse meu agradecimento chegue aos demais edis, mas tenho outras metas para o futuro.”
“Última palavra?”
“Sinto muito.”
“Bom, como é que você diz mesmo? Aquela sua frase...”
“... nem tudo são flores!” Disse rápido interrompendo-o.
“É verdade. Mas não esqueça, a proposta continua valendo, caso mude opinião.”
“Assim como a minha porta sempre estará aberta a novos clientes.”
“Desde que você aceite defendê-los...”
“Obviamente vereador. Passar bem.”
Como tudo em minha vida, metodicamente construí uma sólida carreira de advogado, pautado principalmente no princípio de poder defender àqueles cuja causa eu considerasse justa. No começo da minha profissão, quando optei pela advocacia criminal, como rege o Código de Ética e Disciplina da Ordem de Advogados do Brasil, sempre tive o cuidado de não cometer um deslize sequer, manchando assim uma carreira que queria seguir até o fim da vida.
Eu sabia muito bem, através da mídia, a quantas andava as ações dos vereadores no meu município, em diversas esferas, e não queria correr um risco desnecessário, apesar das pressões referentes à minha contratação, sempre cogitada por anos a fio. Poderia haver um momento em que essas insistências se tornariam insuportáveis e eu não dispusesse de mais um pingo de paciência para lidar com a situação, correndo o risco de me tornar uma pedra no sapato de algum poderoso senhor da cidade e assim angariar inimigos. Bom, como o verbo é no futuro, deixemos para ele as consequências de meus calculados princípios.

Foi seis meses o tempo em que o citado futuro reservou para uma mudança de postura da minha parte, situação na qual me coloquei por livre e espontânea vontade.
O mesmo vereador Jarbas, agora correndo risco de cassação, se encontrava detido em cela especial na cadeia local, acusado de tentativa de homicídio, e no aguardo de uma audiência em júri popular. O descompromissado advogado que o defendia simplesmente lavou as mãos e abandonou o caso, alegando envolvimento pessoal.
Numa tarde como outra qualquer sua esposa me procurou no escritório e conseguiu me convencer a defendê-lo.
“Ele precisa do senhor.” – Ela começou dizendo com os olhos molhados.
Era uma bela senhora, de fato, na casa dos 40 anos, corpo esguio, educada, fina mesmo. Impossível relacioná-la com o príncipe em forma de sapo, sem abusar do sarcasmo, de como eu definiria o seu esposo Jarbas.
Fiz um gesto para que prosseguisse.
“Foi tudo uma armação, ele não fez nada!”
“Sra. Jamile, preciso ser sincero: todos dizem isso!”
“Não! Ele não fez nada mesmo. Só bebeu um pouco demais, nós dois bebemos. Depois caímos no sono deitados nas cadeiras, em volta da piscina. Havia mais três casais conosco, todos compostos por colegas vereadores do Jarbas. Qualquer um poderia ter entrado na chácara e disparado contra mim, depois chamado a polícia.”
“A senhora chegou a entrar em coma por dois dias, estava embriagada, como pode ter certeza que ele não atirou, tomado por uma insanidade qualquer?”
“Ele me ama, jamais me faria mal algum, eu sei disso. E que motivos ele teria?”
“Diga-me a senhora.”
“Nós dois temos muito dinheiro, viemos os dois de famílias abastadas. Não tenho nenhum seguro milionário em meu nome. Jamais nem pensei em traí-lo com outro homem, amo o homem que ele é, da maneira como ele é.”
“E quem mais poderia querer lhe matar?”
“Não tenho inimigos! A única explicação seria alguém tirá-lo do caminho, por questões políticas, mas isso não tem lógica. É seu último mandato, está abandonando a carreira para se dedicar a arte, sabe, ele é um exímio pintor.”
“Não conhecia esse dom do Jarbas, bem, na verdade intimamente pouco sei do seu marido. A senhora terá que fornecer todos os mais íntimos detalhes que souber, de ambos, e a partir desse momento começar a ser totalmente honesta comigo.”
“Já estou sendo explicitamente sincera com o Doutor...”
“Desculpe-me contradizê-la, mas não está! Tenho anos de experiência com todos os tipos de pessoas e a senhora oculta algo.”
“Em relação a que eu poderia estar mentindo?”
“Ao fato de nunca ter traído seu marido. No momento em que falou olhou para as mãos e desviou o olhar...”
“Foi por pura timidez. O Doutor é muito bonito e tem os olhos mais azuis que eu já vi.”
“Agora que estamos começando a finalmente ficar mais íntimos, me chame de Mathias. E não se preocupe, sei que não está mentindo, só usei de um pouco de manipulação para deixá-la mais a vontade. Agora me conte tudo, todos os detalhes daquela tarde, cada vírgula é importante.”
Depois de 30 minutos sem que mais nenhuma novidade surgisse a dispensei. Precisava falar com Jarbas, caso fosse aceitar o cargo. Toda a história narrada me levava para um quebra-cabeça perfeito, sem nenhuma peça faltando. A Sra. Jamile, a vítima, apesar de envolvida emocionalmente com o suspeito, seria a testemunha perfeita, até demais. Perpassava uma sinceridade que ia além do normal.
Na cadeia, depois da rotina para liberação de visita, facilitado pelo meu conhecimento de longa data com o delegado, pude ter algum tempo de privacidade com Jarbas, um sujeito aparentemente arrasado.
“Que bom que veio Doutor. Falei para Jamile que o amigo seria minha única chance.”
“Se você não é culpado, qualquer bom advogado dará conta de lhe libertar.”
“Mathias” – disse ele quase sussurrando – “Armaram pra mim! Somente um excelente advogado como você vai encontrar uma maneira de me livrar. Por mais que eu não tenha nenhum motivo, também não tenho nenhum álibi. Estava deitado segurando um revólver no colo, enquanto Jamile sangrava para morrer ao meu lado.”
“Sei de todos os detalhes: ninguém ouviu nada, foram todos para o outro lado da chácara, enquanto vocês descansavam. Quando chegaram e viram a cena, chamaram a ambulância que veio acompanhada pela polícia. A perícia constatou que ninguém modificou a cena do crime. O tiro foi disparado pela arma que estava presa à sua mão. Foi constatado vestígio de pólvora em seus dedos... Calma homem!”
Jarbas chorava como uma criança chegando a soluçar. Por um momento tive vontade de abraçá-lo, creio que foi isso que me motivou a lhe defender.
“Tenha calma! Farei tudo que puder para livrá-lo daqui. Vamos começar com um habeas corpus e tirá-lo da cadeia.”
“Obrigado Mathias.” – Ele conseguiu dizer entre os soluços.
Três dias depois Jarbas estava livre, aguardando o julgamento em liberdade, nunca sofrera um simples processo nas costas, tinha residência fixa e pleno desejo de colaborar com a investigação.
Eu me esforcei ao máximo para buscar uma solução para o seu caso, mas quando me vi num beco sem saída, às vésperas de comparecermos ao tribunal, propus a Jarbas que tentássemos um acordo com o promotor do caso, para abrandar a sua pena, no que ele foi categórico:
“Prefiro a decisão do júri e a batida do martelo. Jamais vou admitir que atirei em Jamile, jamais!”
Com essa sua decisão tudo ficou mais difícil. No dia da sessão fiz uma das minhas atuações mais brilhantes de que tenho lembrança. Chamei sua esposa para testemunhar, ele próprio, os envolvidos diretos que participaram do incidente, outros amigos de longa data. Pintei um quadro de inocência perfeito, recheado por um amor pleno, mas literalmente “chovi no molhado”. Nenhum dos meus argumentos tirou da mente dos jurados a visão das fotografias do corpo da vítima e a do revolver com o acusado.
Tentei ao menos convencê-los de que foi um ato impensado, de uma pessoa fora de suas condições normais de raciocínio, pois se tivesse a clara intenção de matar sua esposa, teria então atirado em sua cabeça ou no seu coração, não em sua barriga. O juiz o condenou há 5 anos de prisão em regime fechado, por tentativa de homicídio, com todos os direitos a redução da pena prevista em Lei.
Fiquei muito abatido com a decisão, mas Jarbas me agradeceu profundamente, em meio a um abraço desconcertante.
“Você é um grande amigo e um excelente advogado. Vou lhe confessar algo: eu menti!”
“O que você quer dizer com isso?” – disse enquanto o policial encarregado de conduzi-lo se aproximava.
“Eu nunca tinha ouvido falar do seu pai, mas tenho certeza de que ele teria orgulho do filho que trouxe para esse mundo.”
Quem diria que alguém conseguiria arrancar um sorriso de meu rosto tão facilmente, principalmente num momento igual a esse, aonde por dentro o sofrimento chegava a doer. Foi a última coisa que Jarbas viu da minha pessoa, uma cabeça balançando negativamente com um sorriso bobo na face. Uma semana depois, numa aparente confusão na penitenciária para onde ele foi enviado, alguém lhe tirou a vida. Creio que perdi o único amigo de verdade que eu fiz na vida, mesmo isso ocorrendo de forma tão inesperada. E justamente quando eu começava a aprender a fazer as coisas da maneira mais fácil.
Nunca tive certeza do que de fato aconteceu com ele na prisão, cuja investigação não levou a nada, nem do verdadeiro culpado do disparo contra Jamile. Mas certa desconfiança se apossou de mim algum tempo depois, quando recebi uma pequena correspondência, que por algum motivo tinha certeza de que havia sido engano, pois vinha do Canadá e não conhecia ninguém que residisse ou estivesse de férias por lá. Só notei que estava enganado ao constatar que se tratava de uma devolução de correspondência que não chegara ao seu destino.
Era um envelope simples, com inúmeros selos cobrindo quase todo o seu lado esquerdo, e diversos carimbos azuis. Mais pela curiosidade do que por qualquer outra razão, o rasguei cuidadosamente e retirei de lá um cartão fino com uma única frase digitada no centro, enquanto belos desenhos de tulipas enfeitavam as bordas.
“Voei” para a delegacia. Não foi constatada nenhuma digital na correspondência e na central dos Correios fui informado que a carta não foi entregue diretamente no balcão de atendimento, mas coletada numa das diversas caixas de armazenamento próprio para envelopes que existiam na cidade, em diversos bairros afastados do Centro.
Devido a um controle interno, conseguiu-se descobrir até o bairro onde a carta foi colocada, mas nenhuma testemunha do fato surgiu após a divulgação do fato na mídia. Assim encerrou-se o último capítulo da minha pequena amizade com o agora finado Jarbas. Jamile eu nunca mais vi, mudou-se para bem longe. Bem que gostaria de encontrá-la qualquer dia desses para lhe perguntar se em algum momento seu marido havia lhe mencionado a minha frase preferida, e que por algum motivo estava impressa naquele bilhete.
Prefiro ainda acreditar que tudo não passou de uma brincadeira, que acabou se tornando uma despedida, pois como é fácil de se constatar, na vida nem tudo são flores...

Nota do autor: Esse é um conto de ficção. Qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é meramente coincidência.

2 comentários:

  1. Encuentro tu blog muy interesante y atractivo. Me agrego a tus amigos.
    Saludos desde España

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